19 de março de 2013

Paradoxo de Lost: estava perdido ou apenas adormecido?

Por Miila Derzett






O assunto é "O que acontece quando estamos praticando yoga restaurativo". Como é reconhecido o efeito/estado durante e após a permanência em posturas relaxantes.  
Os lugares e situacões variam desde aulões de 1h30 a 2hs, cursos que ministro em São Paulo e Rio de Janeiro, a salas de aula com média de 35 alunos em cursos de formação. Nesses ambientes, assim como nas aulas permanentes que ministro em Florianópolis, surge o desejo em levantar mais questões sobre o tema. Os feedbacks e relatos que chegam até mim quando retornam de uma postura restaurativa é de um estado "tranquilo e de paz". Perguntam o que é e pra que serve. Procuro as respostas em textos clássicos de yoga, na psicologia e na antropologia. Encontro alguns assuntos relacionados ao descanso, ao processo de adoecimento, a estados alterados de consciência, mas nada que fale a respeito dessa experiência. Nada nem parecido. 
Percebo que desconhecemos esse "lugar". Nas aulas tradicionais de hatha yoga, professores costumam terminar a prática com o savasana, conhecido como a postura do cadáver, onde deitamos de costas no tapetinho e relaxamos por até 5 minutos. Ou 25 respirações. Numa aula de restaurativa reservamos cerca de 25 minutos e já cheguei a 65 minutos numa única postura.  É onde os alunos mergulham num "tempo não relativo", terei a audácia de falar assim. Relatam sensações, visões, sentimentos fortes, ou estar num nada, como se estivessem desligados. Não sei onde andam e se damos nome a isso. A esse estado, esse espaço invadido. Ou se é um espaço que está ali disponivel e pronto. 
Mas nao temos tempo para nos deixar ser levados pela leve brisa até ali. Dá trabalho. A entrega é difícil. Requer tempo, o tempo que nunca nos sobra.
Tal fato pode ser notado pelos milhões de residentes no planeta terra que não descansam direito, que não relaxam, que vivem estressados, presos ao ciclo de consumo e descarte. Quando nos é indicado parar para ter consciência da respiração, para meditar, para refletir sobre quem somos e o que buscamos, para praticar uma postura que, ao invés da ação, peça uma não ação, um aquietamento ou contemplação - o que pensamos? Que é uma perda de tempo. Pensamos ou fomos condicionados a não aceitar dar um tempo ao estado de produtividade continuo. Isso pode ser uma pergunta ao invés de uma afirmação. Porque a necessidade de estar sempre fazendo algo? Se estamos num aeroporto com vôo atrasado e temos algumas horas sobrando para fazer nada, o que fazemos? A maioria vai até o free shop, até a livraria ou pega o celular. Raramente, sentamos como livres testemunhas do saguão do aeroporto ou da zona de embarque para fazer nada. 
Quase nunca viramos testemunhas da vida, pois isso sim é que dá trabalho. Porque é estranho quando todo mundo se move insanamente para todas as direções numa superficialidade, o que eu pareço se, de repente, páro para tentar ver ou escutar o que surgiria de um espaço vazio na minha agenda e de um mergulho em mim? Uma parada para veslumbrar um nada? Ou ainda perceber dores, cicatrizes mal curadas, ansiedade, depressão, medos? Usufruir de um tempo ocioso não significa fazer telefonemas, nem ligar a televisão, ou pegar um livro, arrumar o armário, varrer a casa. Mas significa fazer NADA. 
Esse fazer nada de maneira não planejada é uma das hipótese do que talvez aconteça após o retorno de uma postura restaurativa e de relaxamento do yoga. Os alunos sentam, abrem aos poucos os olhos e descabelados e, por segundos, não entendem sequer quem é a pessoa sentada em frente à eles. Mas não retornam com preguiça ou pedindo para que eu aumente o período de um sono. Eles me olham com uma única e repetida questão: "onde eu estive?". E antes do questionamento aflorar em suas mentes, ainda há um espaço no retorno que dedico profundo respeito: é silencioso. Percebe-se mínima atividade em algumas áreas corticais como a LPPS (Lobo Parietal Posterior Superior), responsável por formar a nossa imagem e percepção corporal frente as informações advindas pelos sentidos.  O cérebro funciona com o sistema nerovoso simpático, ativo e o corpo com o parassimpático, diminuindo suas funções e atentando-se apenas ao mínimo para sobrevivermos (ou sistema vegetativo).
É agradavelmente prazeroso ver esses rostos. E ao mesmo tempo tenso, pois particularmente não sei dar as respostas, temos medo do que não sabemos e, ou ignoramos ou construimos respostas. Podemos simplesmente bisbilhotar por aí.  No budismo chamam essa área de tranquilidade de "ashunya" ou espaço vazio, zero, onde pensamentos, sentimentos, emoções ficam paradinhos na porta de entrada, ou estão presentes (pois a mente nunca pára realmente) mas é a consciência deles é que desaparece, ou estaria vagando num vazio? Um vazio delicioso para alguns e anustiante para outros marinheiros de primeira viagem. Um lugar respirado, leve, isento de ruídos da mente: não tem medo, não tem ansiedade, não tem agitação para aqueles que se permitem mergulhar no abismo vazio de si mesmos. Mas tem alerta ainda assim. Você escuta minha voz, escuta o sininho de longe, como se chamando você ali adiante, sem pressa.

Será que existe um estado melhor do que esse? Você consideraria esse estado de perda de tempo? De dormência, ou de "soninho" como algumas linhas da Yoga tendem a, na tentativa reducionista com esse "salto", chamar?  Você não precisa de asanas nem de respirações, nem de tapas em desequilíbrio que te enchem de  (mais) regras ou de desapegos (nunca realmente compreendido o que significa) na qual resultado das ações confundem ainda mais seu emocional. Porque não basta ao ser humano contemplar e, a partir disso, encontrar seus meios de meditar e entregar-se ao vazio? E porque tememos tanto entrar nele? Ou porque temem tanto que nós entremos nele com mais frequência e sem culpa? E por isso tantos passos e tantas regras, e penitências e tal… Essas são questões interessantes e de profunda seriedade a serem discutidas.
Quando sinto me insuficiente para os padrões considerados modelos de uma pessoa bem sucedida na sociedade moderna, gosto de preparar uma postura restaurativa na sala de yoga e simplesmente desligar tudo: celular, projeções, expectativas. Permaneço por cerca de 45 minutos na mesma postura, envolta em almofadas, pesinhos, acessórios de todos os tamanhos que provém conforto. Percebo um estado curioso: meu músculos soltam, entro num embalo como se estivesse sendo carregada, onde alguém pega todos os problemas e questões e transportam para longe numa caixinha. Enquanto isso, esse alguém vai cuidando de partes psicofísicas do meu ser que necessitam reparos.  
Tento explicar isso aos novos praticantes de restaurativa, que ainda desconfiados, deitam nas posturas provavelmente perguntando o que fazem ali. "Perda de tempo ficar sem fazer nada." Tento explicar que não, que existe uma compensação natural ativa naquelas horas, pois quando estamos neuroticamente presos a questões e pensamentos inúteis (pois na maioria das vezes não temos as respostas que esperamos nem a resolucão de nossos problemas) perdemos dias nessa dormência, viajando em espaços inexistentes, em passado e futuro e completamente desconectados do presente. Quantas horas você acredita que perde assim? Dias? Uma meia vida talvez? E como pode me garantir que uma hora ou duas de uma prática calma ou de inação irá influenciar de forma negativa o seu dia? Essa questão me faz lembrar de Domenico de Masi em "O ócio criativo". 
Eu não posso garantir nada a você. Infelizmente não existem estudos científicos que comprovem que você pode se livrar de muito sofrimento apenas deitando sobre almofadas. E que as horas dedicadas ao mergulho no nada multiplicariam as horas criativas ao retorno ao "relativo" - rotina, tarefas domésticas, estudos, trabalho. O que tenho é experiência própria e com  dezenas de alunos que venho treinando nos últimos 4 anos desde minha formação com Judith Lasater. Mas lembremos de nosso antepassados, avós, mais atrás, os índios e o descanso nas redes por horas após a caça ou atividades de força. Ou como em diversas culturas que ainda se tira um cochilo no meio do dia. Essas pessoas, se não me engano, tendem a usufruir de uma longevidade com muita saúde. E são contentes, em todos os sentidos.
Temos como parar o barco por alguns minutos, soltar a âncora e diminuir a força dos motores? Mudar o olhar fixo sempre em pensamentos no horizonte, lá onde nunca se chega porque queremos sempre o que ainda não temos? Teríamos como deixar a maré nos levar, deitados nesse barco, confiantes, observando o céu e as "nuvens" passageiras?  E se fizer bem, podemos ao menos aceitar e permitir que esse momento se repita, transformado aos poucos em instantes que soltamos as cordas que nos prendem àqueles que ditam nossos passos e sonhos como se fossemos bonecos sem voz e sem coração?
Pratiquemos o soltar se a momentos da prática de presença, jogando-se nesse vazio cientes do todo que o permeia. Um vazio de encontrar-se, um espaço do despertar-se. Um vazio pleno.